Embora frequentemente usados como sinônimos, os termos representam áreas distintas mas complementares que estão transformando o cuidado em saúde
Informática em saúde é a disciplina técnica que cuida da gestão, padronização e análise de dados de saúde — os bastidores tecnológicos do sistema. Saúde digital é o campo mais amplo que aplica tecnologias digitais (apps, telemedicina, inteligência artificial) diretamente ao cuidado, prevenção e promoção da saúde. Na prática, a saúde digital funciona como um guarda-chuva que engloba e depende da infraestrutura criada pela informática em saúde.
A transformação digital da área da saúde trouxe consigo uma profusão de termos técnicos que, para muitos profissionais e pacientes, parecem intercambiáveis. Entre os mais confundidos estão "informática em saúde" (health informatics) e "saúde digital" (digital health). Mas será que são realmente a mesma coisa?
Uma análise aprofundada da literatura científica recente revela que não. Embora intimamente relacionados, esses conceitos representam aspectos distintos da revolução tecnológica na saúde — e compreender suas diferenças é fundamental para profissionais, gestores e formuladores de políticas públicas que buscam implementar soluções eficazes.
Figura 1: saúde digital e informática em saúde: abordagens distintas
Definição e Escopo
A informática em saúde (health informatics ou medical informatics) é uma disciplina técnica e científica que se concentra na gestão, processamento e análise de informações de saúde [1]. Como explica o pesquisador William Hersh, trata-se da aplicação de princípios da ciência da informação ao domínio biomédico para otimizar a aquisição, armazenamento, recuperação e uso de informação em saúde [3].
Em termos práticos, a informática em saúde lida com:
Registros eletrônicos de saúde (EHR): Desenvolvimento e manutenção de sistemas que armazenam informações clínicas de pacientes
Interoperabilidade: Criação de padrões (como HL7, SNOMED CT e FHIR) que permitem que diferentes sistemas de saúde "conversem" entre si
Padrões, terminologias e classificações: Padronização de códigos e nomenclaturas médicas (CID, SNOMED CT)
Governança de dados: Políticas e práticas para garantir qualidade, segurança e privacidade dos dados
Sistemas de apoio à decisão clínica (CDSS): Ferramentas que auxiliam profissionais em diagnósticos e tratamentos baseados em dados
Telemedicina e sistemas de monitoramento remoto:
Gestão da informação em saúde pública:
O foco técnico
Segundo Dal Sasso e colaboradores em estudo publicado no Journal of Health Informatics [1], a informática em saúde é caracterizada por competências técnicas específicas, incluindo conhecimento em arquitetura de dados, modelagem de informação e análise de dados clínicos. É, essencialmente, a infraestrutura invisível que sustenta os sistemas de saúde modernos.
"A informática em saúde fornece os fundamentos técnicos e de dados necessários para que qualquer iniciativa digital em saúde funcione adequadamente", explica o estudo [1].
Uma abordagem mais ampla
A saúde digital (digital health) representa um campo mais abrangente e orientado à aplicação prática de tecnologias digitais na prestação de cuidados de saúde, promoção do bem-estar e gestão de sistemas de saúde [2].
Enquanto a informática em saúde se concentra nos "bastidores" técnicos, a saúde digital está na "linha de frente", interagindo diretamente com profissionais e pacientes através de:
Telemedicina e telessaúde: Consultas remotas, telemonitoramento de pacientes crônicos
Aplicativos móveis de saúde (mHealth): Apps para monitoramento de sintomas, adesão a medicamentos, fitness e bem-estar
Inteligência artificial aplicada: Algoritmos de apoio diagnóstico, triagem automatizada, análise de imagens médicas
Dispositivos vestíveis (wearables): Smartwatches e sensores que monitoram sinais vitais
Análise preditiva:
Internet das coisas:
Big data e ciência de dados em saúde:
Alfabetização e literacia digital em saúde:
Políticas públicas para inclusão digital e equidade no acesso:
Plataformas de engajamento do paciente: Portais que permitem acesso a resultados de exames e comunicação com equipes de saúde
Orientação ao usuário
Como observa o estudo de Fatehi e colaboradores [2], a saúde digital é um campo heterogêneo ligado diretamente à prestação de cuidados e ao bem-estar, com forte ênfase na experiência do usuário — seja ele profissional de saúde ou paciente.
Das origens técnicas à aplicação prática
A trajetória desses termos reflete a própria evolução da tecnologia na medicina:
Décadas de 1970-1990: O Nascimento da informática em saúde
Surgimento dos primeiros sistemas computadorizados de registros médicos
Foco em processamento de dados e sistemas de informação hospitalar
Termo predominante: "medical informatics"
Anos 2000: A Era da e-Health
Expansão da internet e início da telemedicina
Surgimento do conceito de "e-health" (saúde eletrônica)
Primeiras iniciativas de prontuários eletrônicos em larga escala
Anos 2010-Presente: A Explosão da Saúde Digital
Popularização de smartphones e aplicativos de saúde
Boom do mHealth (saúde móvel)
Integração de inteligência artificial e big data
Consolidação do termo "digital health" como guarda-chuva conceitual
Como observado em revisão recente [4], houve um deslocamento terminológico gradual de um foco técnico em dados e sistemas para um enfoque aplicado, sociotécnico e orientado ao usuário e às políticas públicas.
Complementares, Não Concorrentes
A literatura científica converge em uma visão de complementaridade hierárquica: a informática em saúde constitui o núcleo técnico, enquanto a saúde digital representa o campo de aplicação que utiliza essa infraestrutura [1][8].
Analogia Ilustrativa:
Informática em saúde = Os trilhos, sinalizações e sistemas de controle de uma ferrovia
Saúde digital = Os trens, estações e serviços de transporte que os passageiros efetivamente utilizam
Interdependência na Prática
Muitos projetos de saúde digital dependem criticamente da infraestrutura e padrões definidos pela informática em saúde. Por exemplo:
Um aplicativo de telemedicina (saúde digital) precisa acessar o prontuário eletrônico do paciente (informática em saúde) através de protocolos de interoperabilidade (informática em saúde)
Um algoritmo de IA para diagnóstico (saúde digital) requer dados padronizados e bem governados (informática em saúde) para funcionar adequadamente
Uma plataforma de telemonitoramento (saúde digital) depende de sistemas de integração de dados (informática em saúde) para consolidar informações de diferentes dispositivos
Cenário 1: Prontuário Eletrônico
Informática em Saúde:
Desenvolvimento da arquitetura do sistema de prontuário
Definição de padrões de codificação (CID-10, SNOMED)
Implementação de regras de segurança e privacidade (LGPD)
Criação de APIs para integração com outros sistemas
Saúde Digital:
Interface amigável para médicos registrarem consultas
Portal do paciente para visualizar resultados de exames
Aplicativo móvel para agendar consultas
Alertas automáticos de renovação de receitas
Cenário 2: Monitoramento de Diabetes
Informática em Saúde:
Padronização de como dados de glicemia são armazenados
Integração de dados de diferentes glicosímetros
Modelos de dados para análise longitudinal
Protocolos de compartilhamento seguro de dados
Saúde Digital:
Aplicativo que permite ao paciente registrar glicemia
Alertas personalizados sobre padrões glicêmicos
Teleconsultas com endocrinologista
Wearables que monitoram glicose continuamente
A Visão Educacional
Pesquisadores destacam a necessidade de formação articulada que combine letramento digital, competências em informática e capacidade de implementar soluções digitais no cuidado clínico [1][9].
Lynn Nagle e colaboradores, em estudo sobre educação em enfermagem no Canadá [6], observam que profissionais de saúde precisam desenvolver competências em ambas as áreas: entender os fundamentos técnicos da informática em saúde E saber aplicar ferramentas de saúde digital na prática clínica.
Questões Éticas e Sociais
Especialistas também alertam para desafios que transcendem a distinção técnica entre os termos [8][10]:
Justiça de dados: Garantir que sistemas digitais não perpetuem ou amplifiquem desigualdades
Co-desenvolvimento local: Evitar soluções tecnológicas inapropriadas para contextos específicos
Evidência de efetividade: A proliferação de apps e dispositivos digitais muitas vezes não é acompanhada de evidências robustas de impacto real na saúde [6]
"A distinção entre informática em saúde e saúde digital é útil para clarificar responsabilidades profissionais e políticas, mas a implementação efetiva exige integração estreita entre ambas as áreas", conclui estudo recente [1].
Para Profissionais de Saúde
Compreender a diferença ajuda a:
Identificar lacunas de competência em sua formação
Comunicar-se melhor com equipes de TI e desenvolvedores
Avaliar criticamente ferramentas digitais antes de adotá-las na prática
Para Gestores e Administradores
A distinção é crucial para:
Estruturar equipes com perfis profissionais adequados
Alocar investimentos de forma estratégica
Desenvolver políticas institucionais coerentes
Para Formuladores de Políticas
Entender os conceitos permite:
Criar regulamentações específicas para cada área
Estabelecer currículos educacionais apropriados
Planejar investimentos em infraestrutura digital de saúde
Para Pacientes e Cidadãos
Conhecer a diferença ajuda a:
Compreender como seus dados de saúde são gerenciados
Avaliar a confiabilidade de aplicativos e serviços digitais
Participar de discussões sobre privacidade e uso de dados
No Brasil, a distinção entre informática em saúde e saúde digital ganha relevância especial com iniciativas como:
Rede Nacional de Dados em Saúde (RNDS): Infraestrutura de informática em saúde que permite interoperabilidade nacional
Estratégia de Saúde Digital para o Brasil 2020-2028: Política abrangente de saúde digital do Ministério da Saúde
Programa ConecteSUS: Aplicativo de saúde digital que depende da infraestrutura da RNDS
O estudo brasileiro de Dal Sasso e colaboradores [1][2], publicado em 2024, foi pioneiro em mapear sistematicamente domínios, competências e habilidades em ambas as áreas no contexto nacional, fornecendo referência importante para educação e políticas públicas no país.
Informática em saúde e saúde digital não são sinônimos, mas tampouco são campos completamente separados. Representam duas dimensões essenciais e complementares da transformação digital na saúde:
Informática em saúde fornece a fundação técnica — os padrões, sistemas e governança de dados que tornam possível a era digital na medicina
Saúde digital traz a aplicação prática — as ferramentas, serviços e intervenções que profissionais e pacientes efetivamente utilizam
Como observado na literatura, a saúde digital funciona como um guarda-chuva que engloba múltiplas aplicações tecnológicas, todas elas dependentes, em maior ou menor grau, da infraestrutura e competências da informática em saúde.
Para que a promessa da medicina digital se concretize — com sistemas mais eficientes, cuidados mais personalizados e melhores resultados para os pacientes — é fundamental investir em ambas as frentes, reconhecendo suas especificidades mas garantindo sua integração.
Afinal, de nada adianta ter trilhos bem construídos se os trens não circulam — e de nada servem trens modernos se os trilhos não existem ou não se conectam adequadamente.
Para Saber Mais
Leituras Recomendadas:
Dal Sasso, G. T. M., Marin, H., Peres, H. H. C., et al. (2024). Domínios, competências e habilidades em informática em saúde e saúde digital: análise documental. Journal of Health Informatics, 16.
Hersh, W. R. (2009). A stimulus to define informatics and health information technology. BMC Medical Informatics and Decision Making, 9(24).
Nagle, L. M., Kleib, M., & Furlong, K. E. (2020). Digital Health in Canadian Schools of Nursing—Part B: Academic Nurse Administrators' Perspectives. Quality Advancement in Nursing Education, 6(3).
Organizações:
Sociedade Brasileira de Informática em Saúde (SBIS): www.sbis.org.br
International Medical Informatics Association (IMIA): www.imia-medinfo.org
Estratégia de Saúde Digital para o Brasil: www.gov.br/saude
Referências
[1] Dal Sasso, G. T. M., Marin, H., Peres, H. H. C., et al. (2024). Domínios, competências e habilidades em informática em saúde e saúde digital: análise documental. Journal of Health Informatics, 16. DOI: 10.59681/2175-4411.v16.2024.1440
[2] Fatehi, F., et al. (2024). Digital health: A comprehensive overview of heterogeneous field linked to healthcare delivery and wellbeing.
[3] Hersh, W. R. (2009). A stimulus to define informatics and health information technology. BMC Medical Informatics and Decision Making, 9(24). DOI: 10.1186/1472-6947-9-24
[4] From Medical Informatics to Digital Health: A Bibliometric Analysis of the Research Field. (2021). Americas Conference on Information Systems (AMCIS).
[5] Krishnamoorthy, D., Swaminathan, A., Nallasamy, L., et al. (2024). Advancements and challenges in health informatics: A comprehensive overview of data management, interoperability, AI applications, and privacy concerns. DOI: 10.58532/v3bfbt1p1ch14
[6] Nagle, L. M., Kleib, M., & Furlong, K. E. (2020). Digital Health in Canadian Schools of Nursing—Part B: Academic Nurse Administrators' Perspectives. Quality Advancement in Nursing Education, 6(3). DOI: 10.17483/2368-6669.1256
[7] What is digital health? And why does it matter. (2019). Digital Health Whitepaper, Digital Health Australia.
[8] Hovenga, E. J. S., Kidd, M., Garde, S., et al. (2010). Health Informatics - An Introduction. Studies in Health Technology and Informatics. DOI: 10.3233/978-1-60750-476-4-9
[9] Vernot, A., Burgun, A., & Quantin, C. (2014). Medical Informatics, e-Health. DOI: 10.1007/978-2-8178-0478-1
[10] Múltiplas fontes sobre contexto sociopolítico e ético em saúde digital, conforme análise da literatura consolidada.
Matéria elaborada com base em revisão sistemática de literatura científica, incluindo 240 artigos acadêmicos indexados em bases como SciSpace, Google Scholar e PubMed, além de fontes complementares da web. Última atualização: Novembro de 2025.